quinta-feira, 3 de setembro de 2020

Violência no Ceará Coroinha é torturado e morto em novo caso de rixa de facções

© Reprodução
As velas eram acesas, quarenta minutos antes, todas as sextas-feiras e domingos, na paróquia São Pedro, em Barra do Ceará, periferia de Fortaleza. Jefferson Brito Teixeira, 14, chegava cedo ao local onde frei João Flores, 66, celebrava a missa. A pandemia do novo coronavírus havia paralisado esse ritual por cinco meses.

No último dia 18, ao ser confundido com um membro de facção criminosa, Jefferson foi morto com brutalidade por criminosos, em mais um caso da escalada de violência entre facções no Ceará. "Impotência é o sentimento que fica, após esse crime bárbaro contra um menino carinhoso e querido por toda a comunidade", disse o padre.

A notícia do assassinato de Jefferson chegou ao Vaticano, por meio de carta enviada por Kilbert Amorim Naciel, integrante da paróquia. Em resposta, o papa Francisco enviou uma mensagem de pesar.

"Dói-me muito o que contas sobre Jefferson. Estou próximo de ti e rezo por ti, pela comunidade paroquial de São Pedro da Barra do Ceará. Rezo pelo eterno descanso do Jefferson e também rezo pela avó que ficou sozinha. Que Deus tenha misericórdia dos assassinos. Por favor, não te esqueças de rezar por mim e te peço que digas à avó de Jefferson que estou muito próximo a ela. Que Jesus te abençoe e a Virgem Santa cuide de ti. Fraternalmente, Francisco."

Jefferson voltava da aula de capoeira, no fim da tarde, quando foi linchado e teve o corpo vilipendiado. Segundo informações coletadas pelo DHPP (Departamento de Homicídios e Proteção à Pessoa), que investiga o caso, o coroinha, que não tem antecedentes criminais, pode ter sido confundido com um rival porque apresentava três cortes na sobrancelha, como teria o real alvo.

Ele foi morto com chutes, pauladas, pedradas e tiros de arma de fogo, no entroncamento de três ruas, limitadas por facções.

"Muito triste ver uma criança perder a vida assim, do nada. Foi muita maldade o que fizeram com esse menino, que não fazia mal a ninguém. Vi ele crescer. Era sempre atencioso com a avó, um servo de Deus. Era como um filho pra mim. Só me resta o consolo celestial", contou uma vizinha, que pediu anonimato por temer represália.

O adolescente foi sepultado em um cemitério público da cidade, com as vestes de coroinha, como atuou por dois anos. O gesto serviu de homenagem ao avô, que o garoto chamava de "pai", um dos principais membros da igreja, que faleceu em 2018.

No dia 23, três suspeitos foram presos por participar do assassinato do adolescente. Dois deles tinham sido detidos, um dia antes, por guardas municipais por tráfico de drogas, mas liberados.

Pelas investigações, o sinal da tornozeleira indicou que eles estavam no local e hora da morte de Jefferson. Segundo a polícia, porém, os dois negaram estar no local do crime.

Ainda segundo a polícia, o outro detido admitiu ter espancado o adolescente, porque ele era de facção rival e estaria roubando. A reportagem não conseguiu localizar a defesa dos três suspeitos, que seguem presos.

A morte de Jefferson põe em evidência a violência na disputa de território pelo tráfico de drogas no Ceará. Em junho, em um episódio de demonstração de força, criminosos usaram fogos para marcar posição na disputa pela venda da droga.

O estado convive com as disputas de quatro facções por territórios e tráfico de drogas: CV (Comando Vermelho), do Rio de Janeiro; FDN (Família do Norte), do Amazonas; Guardiões do Estado (GDE), grupo criminoso local; e o PCC de São Paulo -o grupo paulista foi nesta recentemente alvo de operação policial em diversos estados para desmantelar a hierarquia de comando.

"Não podemos chamar o policiamento para fazer a segurança dos festejos da igreja, porque a facção não deixa. Uma rua é comandada pela CV e a outra pela GDE. Ficamos no meio dessa guerra sem fim", disse um dos frequentadores da paróquia, Otávio Mota (nome fictício).

A Secretaria de Segurança Pública e Defesa Social registrou, nos primeiros sete meses do ano, 2.540 crimes violentos no Ceará. O número já é maior que o contabilizado em 2019, que teve 2.257. Até julho de 2020, os homicídios no estado mais que dobraram no período e já representam 112,54% de todas as ocorrências durante o ano anterior.

"Houve uma redefinição do crime, principalmente, porque o comércio de drogas foi afetado durante a pandemia. Assim, as facções estão buscando novas formas de mercado para sobrevivência. Os pactos foram quebrados neste ano, tornando-se uma gangorra que facilita o aumento da violência", diz o sociólogo César Barreira, coordenador do Laboratório de Estudos da Violência da UFC (Universidade Federal do Ceará).

Jefferson foi uma das 365 vítimas de morte violenta, com idade entre zero e 18 anos, neste ano no Ceará, de acordo com o monitoramento do Centro de Defesa da Criança e do Adolescente (Cedeca) -um acréscimo de 97 em relação a 2019. Em comparação por sexo, 125 eram meninos e 40 meninas, um salto de 152,85% e 100%, respectivamente.

A região da Barra do Ceará, onde o coroinha foi assassinado, teve o maior acréscimo em letalidade nessa faixa etária em Fortaleza. Já foram 11 somente no primeiro semestre, ante quatro. Folhapress/CE

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